domingo, 14 de agosto de 2016

"Ao sair de Alpiarça começa um velho muro por traz do qual marulham as altas folhagens de um arvoredo palreiro"


«Ao meio da estrada de Alpiarça que se desliga da linda estrada de Almeirim para atravessar entre searas e vinhas os catorze quilómetros que separam aquela vila da capital do Ribatejo, vê-se com surpresa surgir num distante socalco uma vasta e complexa construção que diríamos ser o quê? Uma chartreuse? Talvez. Entre as ramarias desinquietas dos choupais e à medida que nos vamos acercando da vila a construção vai cada vez mais tomando o vulto e o aspecto monástico com as suas frontarias reluzentes de cal, a confusão dos seus telhados, as suas chaminés espalhadas por toda a parte, as gelosias verdes das suas janelas românicas e as galerias do seu claustro exterior aberto sobre os campos; e quem não souber onde está, irresistivelmente será levado a perguntar se ali reside uma comunidade e o que fará – se filosofia, se licores? Para atingir esta casa de um tão enigmático aspecto é preciso atravessar a vila de Alpiarça e seguir ao longo da grande rua que a corta ao meio e cujo prolongamento é a estrada que conduz a Almeirim. Ao sair de Alpiarça começa um velho muro por traz do qual marulham as altas folhagens de um arvoredo palreiro. Eis aqui o portão, um portão de quinta, ou de granja, envelhecido, enferrujado, emperrado, a um caminho largo e arejado com um sulco macio de rodas de carruagem, que convida tanto mais atraentemente a entrar, quanto do portão não se vê a casa, e avançando alguns passos entre adegas e lagares, eis que a casa nos aparece, de uma brancura radiante e de um pitoresco tão original e tão vivo que estacamos a contemplá-la como a uma obra de arte. O leitor não conhece pessoalmente o dono da casa? Eu vou apresentá-lo: Em primeiro lugar já o leitor por certo verificou que está no domínio de um lavrador, e o dono da casa com efeito, o é. Somente é também um homem de grande cultura, de grande gosto, o que explica que, ao lado das suas adegas e lagares, no meio das suas vinhas, dos seus olivedos, e dos seus sobreiros, ele construísse para viver, esta casa que surpreende, que intriga, que encanta e que na vida de um homem como ele, é verdadeiramente uma obra. Depois verifiquei que esta casa é muito singular, pois tem um grande porte e nenhuma ostentação. Não se lhe pode dar o nome de chateau ou de manoir, ou mesmo de casa de campo. Dir-se-ia uma velha residência de família, transmitida por herança de pais a filhos.


 No entanto não tem seis anos de construída; e não lhe dá este primeiro aspecto a conhecer não já o gosto mas o fundo nobre do carácter do homem que a construiu, e que assim pretendeu adoptar a sua noção da família ao domicílio que melhor lhe convém e que ainda é aquele que noutros tempos a abrigou e perpetuou? A casa dos Patudos, pois esse é o seu nome, nasceu ontem e tem séculos. De nobreza? Não. De solidariedade de família, de virtudes domésticas, de agasalho de hospitalidade. Por efeito do seu temperamento, da sua educação, o dono desta casa é um destino inteiramente votado ao amor a ao culto da arte a ao qual todos os outros, mesmo o que o prende à lavoura, mesmo o que o lançou na política, são destinos acessórios. Assim, a sua casa, abriga com a sua família, o maior número de obras de arte que ainda enriqueceu o domicílio dum homem sem ostentação, e nele se presta à arte um culto tão fervoroso, que se diria não se viver ali para outra coisa. As suas salas são galerias de pintura e escultura, onde é licito passear com um catálogo nas mãos, como nas salas dos museus. Tropeça-se em objectos de arte. Aqui é um móvel, acolá uma talha, além uma faiança, mais além um medalheiro. Numa vitrina está a mais bela obra de olaria portuguesa. Noutra é fácil admirar ao lado de um autêntico Galrão, um Stradivarius autêntico, o que caracteriza a serenidade desta paixão, a que tantos se entregam por puro luxo é que ela se foi instalar longe do ruído da vida mundana e da publicidade e se sacia solitariamente. Nessa casa amam-se todas as artes mas só uma se cultiva – a música. Se ao leitor sucedesse passar já noite velha, pela beira da estrada de Almeirim não seria de estranhar que ouvisse por entre o concerto do coaxar das rãs, as harmonias vindas lá de dentro, duma sonata de Beethoven, ou de Mozart. É no que ali se passam as noites.» (Do livro As Constituintes de 1911 e os seus deputados, páginas 109 a 111, a descrição da casa e da vida íntima do ilustre diplomata, feita pelo apreciado escritor Sr. João Chagas).

«Texto colocado nas redes sociais por: Bruno Melão»

Sem comentários:

Enviar um comentário